Trecho de livro

Coisa de Rico

O antropólogo Michel Alcoforado faz uma análise bem-humorada e absurdamente real do comportamento das elites brasileiras

Leonardo Neiva 06 de Agosto de 2025

Com um raríssimo acesso ao topo da cadeia financeira do Brasil, o antropólogo Michel Alcoforado teve a oportunidade de acompanhar de perto diversos tipos comuns e reconhecíveis das elites nacionais: o casal de novos ricos da Barra da Tijuca que viaja para comprar roupas de grife em Miami, a herdeira de uma família tradicional que hoje vive na Suíça ou o embaixador que acredita que o Itamaraty não é mais o mesmo desde o aumento de vagas para a carreira diplomática. O resultado é o livro “Coisa de Rico” (Todavia, 2025), uma análise por vezes divertida, por vezes absurda, que nada mais é do que a pura realidade cotidiana do 0,1% dos brasileiros mais ricos.

O livro traz análises cheias de humor típicas do trabalho de Alcoforado, que desfila um vasto repertório antropológico conquistado ao longo dos anos na posição de “antropólogo do luxo”. Foi de onde conseguiu avaliar muitos dos fenômenos que definem os super-ricos do país. Coisas peculiares como o fato de que praticamente nenhum deles se considera rico. Afinal, há sempre alguém com mais dinheiro, nome ou patrimônio — em suma, alguns degraus mais próximo do topo da pirâmide.

O autor explica também práticas que ganharam visibilidade nos últimos tempos, como o quiet luxury visível em séries como “Succession” (2018-2023): tendência de moda cara aos ricos mais tradicionais, marcada por pouquíssima ostentação nas roupas, cores e acessórios. Esse tipo de preocupação demonstra o quanto, nas rodas mais altas da sociedade, os códigos de conduta podem ser ainda mais importantes do que o tamanho da conta bancária.

São regras complexas de seguir porque estão em tudo, da forma de falar à escolha de onde morar. Situações que refletem a epígrafe do livro, extraída de um texto da escritora Clara Drummond sobre a elite brasileira: “Eu anoto coisas que vejo ou ouço e essas são provavelmente as partes mais caricatas do livro. São situações verídicas, mas parecem diálogo de vilão de novela mexicana.”


Quase dois anos depois do incidente com Mário Jorge e Claudette no aeroporto de Miami, Olívia, filha de uma família tradicional de São Paulo, me convidou para um almoço perto de seu apartamento na capital suíça. Filha de um ex-banqueiro, ela era dona de um fundo de investimento criado com o patrimônio da família. Em meados dos anos 2000, decidiu juntar as heranças deixadas pelo bisavô latifundiário e pelo avô industrial e somar as duas com a do pai para assumir a própria caixa-forte.

Nos encontramos na porta de um restaurante na Rue de Rive, uma das áreas mais nobres de Genebra. Ao contrário de Mário Jorge e Claudette, Olívia vestia calça preta e camisa social de seda branca larga, de corte assimétrico, sem marcar os contornos do corpo. Não carregava nenhum produto com logo aparente ou acessório dourado.

A mulher me encontrou com um sorriso discreto e um abraço de pouca intimidade, daqueles nos quais as pessoas se aproximam só para lembrar quão distantes são.

— Que prazer te encontrar, Michel. Eu só tinha te visto por aquela telinha do Skype ou na capa dos jornais, né? Ficou famoso! Quem diria…

O constrangimento do encontro foi logo dissipado pela chegada da recepcionista. A funcionária nos recebeu com uma proximidade reservada aos habitués, perguntando por Maria Catarina e Esther, as filhas da minha anfitriã, e quando a família voltaria a encomendar o jantar todos os dias no estabelecimento.

Olívia se justificou para mim:

— Eu venho sempre aqui — disse antes de nos sentarmos. — É perto de casa e não perco tempo precisando escolher o que eu quero. Quando a empregada tira férias e volta pro Brasil, o chef daqui monta nosso jantar todos os dias.

Almoçamos juntos. Acostumada a taças de cristal, pratos sobre pratos, arranjos de flores naturais, ela gesticulava sem se preocupar com possíveis choques com a cenografia. Um sinal claro do treinamento recebido e da fluência com que transitava por cenários como aquele.

Eu apenas me lembrava, ainda dos tempos da infância, de Glorinha Kalil no Fantástico, dominical da TV Globo, ensinando às massas como deviam proceder com tanta quinquilharia ao redor. Não gesticule muito, hein? Não é chique. Nunca apoie sobre a mesa, tá bom? Não é chique. Cotovelos sobre as toalhas brancas, jamais. Jamais. Não é chique.

O estilo já ganhou até nome nos meios de comunicação: quiet luxury, um luxo capaz de sussurrar quem se é para poucos, em vez de gritar o dinheiro que se tem

Tempos depois do almoço em Palm Beach, mais uma vez eu me via diante de um ricaço em um restaurante no exterior, ainda sem saber como me portar e tendo de tomar cuidado para não dar pistas do meu histórico como um “de fora”.

O baile dos garçons pelo salão não atrapalhava nossa conversa nem brecava meus pensamentos. Enquanto Olívia falava, eu me perguntava como alguém com tanto dinheiro podia se vestir de maneira tão simples.

Cometi um erro crasso, mas comum em encontros com um rico tradicional. Em geral, quando de frente a um endinheirado sem nenhum logo aparente, tendemos a atribuir-lhe simplicidade, fineza e bom gosto, em contraposição ao apego dos novos-ricos a itens chamativos.

O estilo já ganhou até nome nos meios de comunicação: quiet luxury, um luxo capaz de sussurrar quem se é para poucos, em vez de gritar o dinheiro que se tem, como gostavam de fazer Mário Jorge e Claudette. Os seguidores da tendência apostam em tecidos de alta qualidade como seda chinesa, linho puro do Norte da África e tricôs de lã de ovelhas geneticamente modificadas para fornecer a melhor matéria-prima do mercado. Se possível, em tons pastéis ou cores escuras, e sem logos visíveis.

Apesar de ter ganhado um nome, o movimento não é novo. Diferentemente dos novos-ricos, ansiosos por exibir as coisas compradas, os bem-nascidos ostentam a própria diferença mais para os “de dentro” do que para os “de fora”.

Enfurnados em suas mansões, carros blindados, elevadores privativos, escolas de elite e restaurantes exclusivos, os ricos tradicionais têm menos contato com indivíduos de outras classes do que os emergentes, ainda muito ligados à família e aos amigos de quando eram pobres. Assim, quando precisam operar a diferença, os quatrocentões brasileiros estão mais interessados em serem reconhecidos pelos seus do que pelos outros. E, por conta disso, se valem de objetos, assuntos e amizades só entendidos por quem nasceu e viveu nos mesmos círculos.

A aparente simplicidade, no entanto, revela uma camada ainda mais perversa da opressão de classe. Ou o ricaço, sabendo da estrangeirice do interlocutor, nem se dá ao trabalho de ostentar seus hábitos de vida e bens de consumo, ou ostenta marcas e signos que o recém-chegado, por fazer parte de outro mundo, não tem a capacidade de perceber. Nos dois casos, evidencia-se a diferença.

Olívia seguia o rito. Assim que nos sentamos à mesa, uma ricaça francesa foi ao nosso encontro para cumprimentá-la.

Diferentemente dos novos-ricos, ansiosos por exibir as coisas compradas, os bem-nascidos ostentam a própria diferença mais para os “de dentro” do que para os “de fora”

— Olívia, querida, que prazer te encontrar aqui. Como está sua família? Falamos de você ontem lá em casa. Você tem ido muito a Paris? Essa blusa tem a cara da Anne. É dela? Tem falado com ela?

— Mandei fazer. Tá ótima. Estive lá um dia desses — respondeu.

Anne era Anne Adélia Cristina Maria Tereza Fontaine, brasileira, dona da marca Anne Fontaine, conhecida por aqueles tempos como o melhor lugar para comprar camisas brancas do planeta.

Todos os dias celebridades, artistas, empresárias, políticas e endinheiradas cruzavam os portões da loja a ponto de, quando cheia, a área central lembrar a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. Da França, Carla Bruni. Dos Estados Unidos, Oprah Winfrey, Britney Spears, Michelle Obama e Uma Thurman. Da Austrália, Cate Blanchett. Do País de Gales, Catherine Zeta-Jones. Do Brasil, Olívia. Da França, Marie Constance de Singly de France, a madame que acabara de nos cumprimentar no restaurante.

— Essa é uma pessoa boníssima. Rica. Riquíssima. Tem até castelo. Tivemos lá um dia desses. Eu, meu marido e as crianças.

Se eu fosse francês ou conhecesse profundamente os marcadores de diferença em funcionamento naquela cultura, a teria tratado com a devida reverência. Afinal, ela era uma nobre.

Marie Constance tinha um nome composto inspirado em santos católicos e princesas da Idade Média — um indício claro de que seus pais não a batizaram com base em um guia de nomes de banca de jornal. Além disso, era uma De France, De Singly, numa sociedade em que as partículas de/du são um carimbo de comprovação do passado nobre das famílias, detentoras de nacos de terra e de reinados antes da grande revolução de 1789. E, como se não bastasse, ainda tinha um castelo.

Ter um château é um importante traço de distinção para uma certa aristocracia francesa. Os estudiosos Michel Pinçon e Monique Pinçon-Charlot veem os châteaux como regiões morais, fontes de identidade nas quais as famílias têm a chance de se lembrar dos grandes feitos dos antepassados e colocar em prática, no presente, a própria distinção. É um espaço de reprodução da tradição. É assim que um rico se inventa como rico na França.

Anne Fontaine só conseguiu ressuscitar a falida fábrica de camisas do então marido, Ari Zlotkin, porque entendeu bem as especificidades da clientela.

Em um domingo, fuxicando os baús, os depósitos de moldes e peças antigas da marca, olhou para as roupas e viu o futuro: “E se eu inventasse uma marca de camisas brancas capaz de fazer pelas mulheres chiques a mesma coisa que o pretinho básico fez pelas nossas mães e avós?“, revelou o pensamento a uma revista de Paris.

É dando atenção ao menor, àquilo que é supérfluo e que passaria despercebido para a maioria das pessoas, que o ricaço se vende como especial, excepcional

Desenhou de vinte a trinta modelos, produziu cinco ou seis peças de cada um, e as entregou aos representantes comerciais. Venderam tudo em poucos dias. Cada camisa foi criada e produzida levando em consideração o apreço pela arte do detalhe, um dos mais caros à operação da distinção, segundo Béatrix Le Witta — socióloga com anos de pesquisa nas elites do Velho Continente.

O ascetismo burguês é uma forma eficaz de mostrar controle sobre a natureza e sobre si mesmo — traço representativo de um estado mais avançado no processo civilizatório, como analisado pelo sociólogo alemão Norbert Elias. Afinal, é dando atenção ao menor, àquilo que é supérfluo e que passaria despercebido para a maioria das pessoas, que o ricaço se vende como especial, excepcional.

Produto

  • Coisa de Rico
  • Michel Alcoforado
  • Todavia
  • 240 páginas

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